Um autor só pode ser entendido como tal quando uma constelação soberana gira em torno de si, mas simultaneamente se desvia da sua órbita original, possibilitando-nos a capacidade de viajar de estrela em estrela até à verdade. Parafraseando-o no catálogo da sua exposição (decorrida no ano do seu suicídio, 1970): “Dividi a minha existência de 45 anos, repleta de contradições, em quatro correntes: os Rios do Livro, Teatro, Corpo, Ação e os estruturei de modo a desaguarem no Mar da Fertilidade”. São estas as quatro máscaras principais de Mishima: o escritor, o dramaturgo, o aristocrata e o guerreiro. Todas elas desaguam na origem, naquela mesma fonte; a verdade que faz nascer algo perante a destruição do tempo – como no final de Tennin Gosui (A Queda de um Anjo, 1970). A vida, mas mais drasticamente a morte, são susceptíveis de serem artísticas e esse é o fascínio (mas o terror) da vida e obra de Mishima.
Hanjo (1956) representará uma surpresa para os menos conhecedores, pensando erradamente que a morte é a única inquietação de Mishima, como suscitará o escândalo para os entendidos no teatro Noh. Não mostrando uma formalidade radical (outras peças são-no mais veementemente: Madame de Sade (1965) ou Meu Amigo Hitler de 1968) mantendo, assim, certo classicismo temático (a loucura da amante e a impossibilidade do amor), Mishima inverte do avesso as intenções aparentes desta curta peça, tornando-a uma digna representante das tragédias silenciosas, na esteira da moderníssima escrita psico-sexual dos seus contemporâneos (ver Utsukushisa to Kanashimi to [Beleza e Tristeza, 1964] de Yasunari Kawabata ou Kagi [Confissão Impudica, 1956] de Junichirô Tanizaki) com a introdução da personagem extremamente disforme, mas palpável, de Jitsuko, uma mulher ressentida com a beleza amorosa, rememorando subtilmente a personagem sádica de Kyoko no ie (A Casa de Kyoko, 1959), certas confissões do narrador de Kamen no Kokuhaku (Confissões de uma máscara, 1948) e, evidentemente, o personagem principal de Kinkaku-ji (O Templo do Pavilhão Dourado, 1956) que queima o exuberante e erótico Pavilhão Dourado, por não resistir a tanta beleza estática. Também o final de Hanjo é deliberadamente aberto para sublinhar a última linha de Jitsuko: sorrindo com a impossibilidade de qualquer tipo de felicidade; guardando a beleza só para ela.
Como disse Mishima: “O drama magnífico onde escorre sangue falso talvez seja uma experiência mais forte e profunda do que as da vida e possivelmente comova e enriqueça as pessoas.” Esperemos que assim seja com esta.
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